Eu queria ser uma estrela pra viver longe daqui. Eu queria ser uma espada pra ferir, uma faca pra cortar, uma tesoura pra rasgar, uma lança pra atravessar. Eu queria ser a fome do mendigo, e o medo, o frio, a falta de moradia. Eu queria ser a cobra peçonhenta, que joga o seu veneno e vai embora, o sapo que incha e mete medo, a barata que dá repugnância, a abelha que pica e dói, vermelhidão, o escorpião que mata com o ferrão.
Eu queria ser prisão, que impede o sol, a rotina normal, os fins de semana de diversão, que causa humilhação, aperto, solidão e grandes de ferro. Eu queria ser o recém nascido que é lindo e fofo, mas dá trabalho, tira o sono, berra, faz manha, cocô de minuto em minuto. Eu queria ser a amate que se garante, que destrói uma família, e crianças choram, e o pai vai embora, e mãe a se sente uma idiota.
Eu queria ser o grito que silencia, a solidão que agonia, a que passa a perna no jogo, a trambiqueira, a que fala pelas costas, a prostituta que fode e vai embora, e não chora, e não espera, e amanhã já tem outro no meio das pernas. Eu queria ser o trovão que assusta, e o raio que dispara descargas elétricas. Eu queria ser a desilusão, que diz que papai noel é o meu pai que bota uma almofada na barriga, e minha mãe a fada que troca meus dentes por moedas, que páscoa não é só chocolates e que Deus talvez seja uma tremenda mentira.
Eu queria ser a lágrima, e a amiga que rouba o namorado, e filho que joga os pais no asilo. A menina que rasga flores, que odeia o amor, que trata mal seja quem for. Eu queria ser a sede do deserto, o atalho que complica, a pessoa que começa uma briga. Eu queria ser a ressaca do dia seguinte, a palavra que foge no poema, o orgulho esquecido, o cara que corta as árvores e que prende os pássaros, a frieza, a falta de sorrisos.
Eu queria ser o fel que amarga a boca, e o egoísta que nega a água, e nega a família e os outros que se estrepem. Eu queria ser o espinho que fura, e o solo infértil, e o espelho que quebra, a macumba que não dá certo. Eu queria ser a falsa que fala com todo mundo, e mil amigos, e eu te amo feito piscar os olhos. E ser chuva em um dia de praia, e sapato que aperta o pé, cheio de chulé, roupa que engorda, quarto em desordem. E ser afta, e mentira e pontapé, desconforto, imperfeito e morno.
Eu só não queria ser a boba da corte, e sou o tempo todo. Não me leve a mal, hoje, eu só queria ser alguma coisa que fere, desespere, incomode, chame a atenção, tire a atenção e cause dor. Porque cansei de levar porrada, e suportar, e calar quando eu deveria urrar, e mutilar, e me entregar, e me ferrar, e levar patada, e de seguir regras, conceitos, sendo sempre a certa, a boazinha que só diz merda, e a esquisita que parece viver em outro planeta e a convencida que não fala com Deus e o mundo. Eu só não queria ser a que segue a dieta, procura as palavras certas, a que ama em demasiado, enxerga flor em tudo, e arco- íris, poemas e canções.
Eu só queria me lembrar, que eu posso machucar, mas não o faço. Só, pra não esquecer, pra não morrer, pra que eu possa me avistar, e enfim dizer que sou essa, e não hei de escapar de mim, mesmo que o mundo me dê brechas.
Elen Abreu
Nenhum comentário:
Postar um comentário